No mundo cristão, o Diabo aparece como a antítese de Deus, quase o seu alter-ego, a própria dialética da divindade.
O gaúcho acredita firmemente no diabo, tanto como acredita em Deus. De uma maneira geral, ele é visto como um anjo chamado Rafael, muito capaz e muito invejoso. Tão alto subiu, que quis igualar-se a Deus e por isso foi precipitado nas profundezas do inferno. Tal capacidade do Diabo aparece numa das variantes da lenda da criação do homem e da Mulher, por exemplo.
O gaúcho não gosta de pronunciar a palavra Diabo, porque acredita que repetindo o seu nome muitas vezes durante o dia, de noite ele aparece, batendo um martelinho. Então, usam-se no RGS outras palavras e outros nomes para menciona-lo; Tinhoso, Capeta, Vermelhinho, Demo, Demônio, Satã, Satanás, Belzebu, Dianho, Diabrete, Endiabrado e Diacho.
No entanto, em mitos provérbios correntes no linguajar gauchesco, o Diabo esta presente, ao natural; 1. Com mulher de bigode, nem o Diabo pode. 2. Quando dois brincam de mão, o Diabo cospe vermelho. 3. O Diabo, quando não pode vir, manda um parente. 4. Mais tem Deus pra me dar do que o Diabo pra me tirar. 5. O Diabo sabe por Diabo, mas sabe mais por velho. 6. O Diabo não e tão feio como9 o pintam. 7. Fulano hoje esta com o Diabo no couro. 8. Ele só quer Deus pra si e o Diabo pros outros. 9. Foge dela como o Diabo da Cruz. 10. A moda Diabo. 11. Onde o Diabo perdeu as botas. 12. Onde nem o Diabo entra. 13. Enquanto o Diabo esfrega um olho. 14. Já que se esta no inferno, não custa dar um abraço no Diabo. 15. Na bolsa do usuário, o Diabo tem uma pataca.
Alem disso, o Diabo aparece em expressões como ‘Vai pro Diabo que te carregue.’’ Em caso de duvidas entre duas alternativas mas, gaúcho diz, filosoficamente; ‘ De Diabo a Diabo...’’ Se uma coisa e ordinária, ruim ou grotesca, diz-seque e ‘marca Diabo’’. Se alguém se surpreende desagradavelmente, exclama; ’ Que Diabo’’. Ou diz; ‘E o diacho’’. Se alguém perdeu alguma coisa e este exasperado, exclama; ‘ Mas onde se meteu o Diabo dessa tesoura?’’
Em canções folclóricas o Diabo aparece no RGS com família e tudo:
‘Eu entrei no inferno a bala,
Com fama de valentão,
Tirei o Diabo no tapa
E a Diaba no bofetão
E ainda fiz os diabinhos
Tudo me pedir benção.’’
Ou ainda em versos como:
‘Que os homens são todos diabos
Não há mulher que ainda negue
Mas todas elas procuram
Por um Diabo que as carregue...’’
Uma ronda infantil muito popular na fronteira-oeste do Estado se chama Diabo-Rengo, onde um menino, com a perna no ar, bate palmas diante dos outros. Do grupo, alguém pergunta: ‘Quem e?’’. O menino com a perna no ar responde: ’Diabo-Rengo’’. ‘Que quer?’’.’Pão e queijo’’. E assim por adiante.
Um dos mais interessantes contos tradicionais do folclore gaúcho é “Os 3 fios cabelo de ouro do Diabo”, onde aparece o Senhor do Inferno casado e até em boa paz com a Diaba, esta sim, duma santa senhora bonachona, que ajuda o herói do conto, com o risco de levar uma surra do marido...
Os guris da fronteira-oeste, não invocam, nas cidades, o Negrinho do pastoreio para achar alguma coisa perdida. Simplesmente cravam um pau no cu do Diabo, autentico ato de magia negra, embora revestido das melhores intenções...
Perde-se, por exemplo, um canivete. O dono do objeto procura um pau qualquer, curto r grosso, de palmo, pontudo. E uma pedra. Aí encosta esse pau na terra, de ponta e bate nele com a pedra, cravando-o aos poucos e dizendo repetidamente: “Diabo, me dá o meu canivete, se não tu não mija, nem caga! Diabo, me dá o meu canivete, se não tu não mija, nem caga!”
E assim vai fazendo, até afundar todo o pau na terra. Achado o objeto perdido, o guri tem que desenterrar o pau, para que o Diabo possa fazer as suas necessidades...
Consta que em Porto Alegre, em jogo de cartas de senhoras finas e cultas, a pratica é a mesma, só que para melhorar a própria sorte e estragar a sorte das adversárias.
Em Pelotas, um guri me explicou que quando as coisas desaparecem é porque o Diabo botou o rabo em cima, tapou com a cola. Assim, cravando-lhe um pau no cu, ele se vê obrigado a retirar o rabo e a coisa aparece...
Na História do Rio Grande do Sul, há a presença de um personagem apelidado de Menino Diabo, único pirata de água doce do Brasil, herói e bandido, cujo lendário tesouro ainda hoje se busca nas costas do rio Jacuí. E o fazendeiro Manoel de Barros Pereira, cujo nome se eterniza na lagoa dos Barros e na historia de Santo Antonio da Patrulha, também se fazia chamar Menino Diabo e teve em São Francisco de Paula Uma fazenda com esse nome.
No mapa do Rio Grande do Sul, existe um Rincão do Inferno, entre Lavras e Dom Pedrito e uma estrada do Inferno, entre Palmares e Mostardas, Na estrada que vai de Santa Maria a Cruz Alta existe a Garganta do Diabo e o trecho da estrada da produção do Arroio Tigela até a entrada de Soledade é a Estrada do Diabo, onde sempre ocorrem acidentes com morte.
Diz o povo de Soledade que, numa noite muito fria, de cerração e tudo, vinha um ônibus quase vazio subindo a Serra, chegando a Soledade. Nos bancos da frente dois homens discutiam as mortes na Estrada da produção, naquele trecho. Um deles assegurou que agora os acidentes iam diminuir porque a Policia Rodoviária Federal ia estabelecer um posto logo a saída da cidade, no que vai para Passo Fundo.
No banco de trás, um moço moreno, crespo, com os dentes muito brancos, sorria muito, ouvindo a conversa.
Quando o ônibus parou num restaurante, a entrada da cidade, os homens desceram e o rapaz moreno e crespo passou por eles e disse: ‘Não adianta botarem Policia Rodoviária ai. Essa estrada e minha, daqui até o arroio Tigela. E vai continuar morrendo gente, cada vez mais!’’ E riu. Os homens perguntaram: ‘Mas quem e o senhor, afinal?’’ Ele não respondeu. Só riu mais ainda e foi recuando para dentro do nevoeiro, deixando no ar m cheiro de enxofre. E por isso que o povo sabe que aquele trecho da Estrada da Produção e a Estrada do Diabo.
Alias, o Diabo e muito comum no folclore de Soledade. Ali esta o Cerro do Diabo, de onde dizem que um estancieiro tirou uma fortuna depois que fez um pacto com o Diabo em troca da vida do seu filho! Na cidade, uns estudantes desconfiaram quando viram uma conhecida professora comprando umas velas vermelhas. Seguiram-na ate uma pedreira e ficaram escondidos, espiando quando ela acendeu quatro velas em cruz e invocou o Diabo, querendo lhe dar a alma em troca de um...Marido!
Um comerciante soledadense que andava mal de vida também foi espiado fazendo um pacto com o Diabo: a sua alma imortal em troca de sorte nos negócios.
Acredita-se igualmente que um laçador de coragem posa fazer um pacto com o Diabo para não mais errar tiro de laço ou pialo.E só se dirigir a uma encruzilhada a meia-noite de Sexta-Feira da Paixão e ai atirar o laço. Vai laçar o próprio Diabo e então só lhe dará liberdade em troca da garantia de acertar sempre com o laço, daí pra diante.
No interior do município de Osório, num baile de sexta-feira, apareceu um rapaz moreno, sorrido sempre, muito simpático, que logo começou a namorar e a dançarem perder marca com a filha da dona da casa. A meia-noite em ponto, uma vizinha assustada chamou a mãe da moça:
_Vem cá, vem ver com quem a tua filha esta dançando!...
Foram as duas para a sala ao, de parede de madeira e espiaram pelo buraco de um no na tabua e viram, bem direitinhos, os ‘pe redondo’’ do rapaz, os cascos! Era o Diabo, mesmo. Ai, a mãe entrou no salão gritando e puxando a filha, empurrando o rapaz moreno sorridente.Este, ao se ver descoberto, deu um estouro, foi tudo uma nuvem de pó com cheiro de enxofre e ele desapareceu, sem deixar nem rastro.
Em Uruguaiana, o Carnaval de 42 (eu era criança e morava lá) fracassou porque se disse que o Diabo, transformado num moço moreno muito bonito ia aparecer e dançar nos bailes, para perder as moças...
Em Montenegro esta vivo ate hoje – e eu o conheço - um homem a quem o povo acusa de ter feito um pacto com o Diabo: a vida de seus próprios filhos, ao atingirem a maioridade, em troca de êxito nos negócios.
No Rio Grande do Sul há uma cidade que deu para trás, segundo se acredita, por causa do diabo. Em 1917, por aí, a cidade de Marcelino ramos era uma das mais importantes do Estado, com grande movimento graças às linhas ferroviárias, presença de quartéis, fronteira com Santa Catarina e coisas assim. Certa noite vinha um viajante num vagão quase vazio do trem quando percebeu junto a si a presença de um moço moreno, meio estranho. Que lhe dirigiu a palavra:
- O Senhor vai para Marcelino Ramos?
- Sim, vou.
- Então, me faça um favor: diga ao padre da cidade que reze uma missa para mim. Senão, eu vou destruir Marcelino Ramos.
O homem, claro, ficou muito impressionado e ainda perguntou:
- E o senhor, quem é?
O moço se levantou e não disse nada. Daí a pouco, desapareceu. O viajante disse mais tarde que teve a impressão que ele se atirara pela janela do trem, quando passavam por uma ponte antes de chegar à cidade, nas ao certo ele não sabia. Simplesmente ao chegar à estação, correu à igreja, esbaforido, chamando pelo padre. Contou-lhe a historia, alegando que o diabo estava ameaçando Marcelino Ramos.
O padre ficou indignado com a possibilidade de rezar um missa para o diabo e repudiou a idéia, veementemente. E pouco depois veio a gripe espanhola, os quartéis se foram, a cidade se esvaziou e nunca mais recobrou a sua antiga importância...
A historia envolvendo a presença do Diabo no Rio Grande do Sul mais impressionante se passou em encantado.
Ali, perto do rio Taquari, lá por voltas de 1930, vivia uma família muito trabalhadora, de gringos, isto é, descendentes de italianos: o pai, a mãe, uma filha moça, um irmãozinho e uma irmãzinha de criação. Todos viviam num casarão de pedra, de dois andares. No andar térreo funcionava uma bodega e uma espécie de restaurante para os muitos viajantes que subiam o rio, de barco e no andar de cima vivia a família. Às vezes fazia-se um baile na parte de baixo, para a alegria dos vizinhos e dos viajantes ocasionais.
Diz-se que numa sexta-feira estava programado um baile. A mocinha da casa, namoradeira que era uma barbaridade, estava se preparando, toda faceira, quando a mãe lhe cortou as alegrias: “tu não vais a esse baile, porque és muito namoradeira e me fazes passar muita vergonha! Tu vais é lá pra cima lavar a louça e arrumar a cozinha.”
A moça ficou quieta diante da mãe, mas para os irmãos disse: “Eu vou a esse baile nem que tenha que dançar com o Diabo!”.
Pra quê!
O baile armou-se cedo, logo depois da ceia e ela conseguiu o auxilio dos irmãozinhos para apressar o serviço. Lavou e secou tudo bem depressa, arrumou-se toda e desceu.
Assim que ela apareceu na escada, já dentro do salão do baile, apareceu na porta um moço moreno, crespo, muito sorridente e simpático. Olharam-se e foi namoro à primeira vista. Começaram a dançar e não paravam mais. O irmão e a irmã de criação também desceram e ficaram olhando o baile, detrás das cadeiras, escondidos.
À meia-noite, o namoro da mocinha com o estranho moço moreno, que pensava ser um viajante subindo o rio, estava escandaloso. Aí, a irmã de criação cutucou o irmãozinho: “Mano, olha o pé daquele rapaz que está dançando com a mana...” Ele olhou e viu o “Pé redondo”, o casco. E gritou e apontou o pé do moço. Todos viram. Os músicos e bailarinos também e foram parando. E logo foram avançando para a dupla, que tinha parado no meio do salão, fechando um circulo, em silencio. Só o rapaz do “pé redondo” sorria sempre. Quando não era mais possível escapar, ele deu um estrondo muito forte e desapareceu numa nuvem de enxofre para cima, furando o pesado teto do primeiro piso e o teto do próprio casarão no segundo andar, destruindo tudo. E desapareceu.
A moça fiou conhecida como a Noiva do Diabo. Casou-se, até. Mais tarde foi morar na beira do rio, onde infernizou a vida do pobre do marido. Morreu não faz muito e está enterrada no cemitério de Encantado, onde todos conhecem as suas historia, mas não gostam de contar porque a filha dela é uma pessoa muita querida na cidade.
Hoje só restam do casarão os alicerces. Alguém comprou o terreno, construiu mais para trás e deixaram na frente, no pátio, aquelas pedras, pedaço de uma casa que o Diabo destruiu...
Nos meios artísticos regionalistas, consta que o pai de Cenair Maica, famoso compositor e cantor missionário, hoje falecido, peleou de adaga contra o Diabo - aqui aparecendo como um negro gaúcho, de bota e bombachas!-toda uma noite. Eu conheci, fui colega e amigo de um fiscal chamado Marchand, da velha alfândega de Porto Alegre, tido e havido como vencedor do Diabo, numa peleia de adaga, junto com um irmão, nos tempos de mocidade. Ele não gostava de falar no caso, mas instado por mim contou tudo, Tim-Tim por Tim-Tim. E que peleia linda! Como advogado, tive e tenho um cliente, em viamão, que varias vezes deu carona para o Diabo! Homem serio e de poucas palavras, ele me contou que muitas vezes vinha de fora, num jipe aberto e numa dessas olhava e ali estava, ao seu lado, quieto, o vermelhinho. Pela presença maligna, ele sabia que era o Diabo, embora o ser estranho não dissesse, nem fizesse nada. E assim como aparecia a seu lado, desaparecia. E também não gostava de falar disso, nem para o seu filho, também meu cliente.
D uma maneira geral a gauchada acredita que o diabo está preso por uma corrente ao pé do trôo de Deus durante quase todo o ano. Ele só é solto na sexta-feira da Paixão, quando então vêm ao mundo preparar as suas judiarias para o ano todo. Foi num desses dias que ele matou o próprio filho de Deus...
A aparência do Diabo, no folclore gaúcho, nada tem a ver com o clássico tipo de chifres, rabo e garfo, vestido de vermelho – embora ele apareça às vezes com o nome de vermelhinho. Ele é sempre um moço moreno, às vezes com os cabelos crespos (chifres?), muito bonito e simpático, sorridente e que dança muito bem. E que tem uma queda especial por moças bonitas...
E no Rio Grande do Sul ele não tem ajudantes, diabos menores. Ele é um só, no mal, mesmo que deus se multiplique na santíssima trindade. A propósito, em minhas pesquisas jamais encontrei a missa Negra no Estado.
Em muitas anedotas a figura do Diabo é evocada, às vezes levando a pior. Que dizer: a astúcia do homem e a ajuda divina podem vencer o próprio Diabo, o que nos dá alguma esperança na eterna luta do bem contra o mal.
Não se surpreenda ninguém com a pujante presença do Diabo no folclore gaúcho. A crença firme nele não é coisa de gente ignorante e simples: o próprio Papa João Paulo II, em bula de poucos anos atrás, garante que o Diabo não é figura de ficção, inventada pela igreja – ele existe!